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EDITAL MEMÓRIAS DO PRESENTE

A Ditadura Nunca Acabou: O Filme GRIN e a Atualização da Violência Contra os Indígenas

POR JULI CANDIDO

O filme “GRIN” é um média-metragem que recupera a história do filme “Arara” de Jesco Von Puttkamer encontrado no antigo Museu do Índio do Rio de Janeiro em 2012, e disseminado por Marcelo Zelic. Além disso, o filme entrevista os sobreviventes do cruel experimento da Guarda Rural Indígena e mostra a atualização das violências sofridas pelos Maxakali.

A seguir, as entrevistas feitas com os três diretores do filme, Sueli e Isael Maxakali, além do cineasta não-indígena Roney Freitas, aprofundam o processo de pesquisa e realização do filme. Para que a oralidade de Sueli e Isael Maxakali não se perdessem, suas entrevistas foram mantidas em áudio, enquanto a de Roney foi transcrita.

É importante lembrar que a gravação das entrevistas sofreu com muitos problemas técnicos, especialmente de conexão com a internet da aldeia de Isael e Sueli, e por isso algumas partes podem parecer soltas na fala dos realizadores. Ainda assim as entrevistas foram mantidas na íntegra para que nada se perca da avaliação dos dois sobre esse importante documento histórico que é o filme “GRIN”.

Entrevista com Isael e Sueli Maxakali

Entrevista com Roney Freitas

Juli – Eu queria começar falando sobre o curta-metragem que você fez junto com o Isael e a Sueli Maxacali, o GRIN. Esse filme traz bastante informação sobre a questão indígena na ditadura, que ainda é um assunto bem apagado, né? Não sei se você concorda. Agora nos últimos anos tem se falado mais, principalmente agora em 2024 por conta dos 60 anos do golpe, mas ainda parece apagado, dada a proporção do assunto.

Roney – Tem um outro documentário também que é mais recente, “A Flecha e a Farda” do Miguel Antunes Ramos, que é bem interessante. Ele fez uma dissertação de mestrado, que é também um pouco o processo desse filme, e a gente conversou muito porque, como o GRIN foi um dos primeiros a tratar desse material (o filme “Arara” descoberto em 2012), ele chegou até a utilizar o GRIN como pesquisa mesmo, como referência, e em algum momento ele até pediu o filme para passar para os povos com quem ele estava trabalhando. Se você não viu ainda eu recomendo, porque eu acho que ele complementa a ideia dessas realizações… tem outras também, né? Tem umas que vão falar do Relatório Figueiredo. Porque isso tudo veio junto com a ação da Comissão da Verdade e

com as descobertas do falecido Marcelo Zelic e conforme o Zelic foi pesquisando para contribuir ali na pasta da Comissão da Verdade nas questões indígenas, nos crimes acontecidos no campo, ele foi disseminando esse material.

Então eu fui um dos que recebeu o material do filme “Arara”, assim como vários outros cineastas. Em paralelo foram sendo feitas várias coisas, entre elas essa aí que eu comentei. Eu estou comentando disso, porque eu acho interessante que tenham surgido vários, assim como a gente tem a produção de filmes sobre a Shoah, por exemplo, a gente tem muita referência cinematográfica de crimes relacionados ao Holocausto, porque é importante a gente ter essa memória do que a humanidade já fez e do que não pode ser repetido, até mesmo para colocar em perspectiva questões contemporâneas.

E eu acho que a ideia da GRIN e dos acontecimentos relacionados no período específico da ditadura tem que ter essa produção incessante mesmo, seja novos artigos, novos filmes… retomar de novo a questão da GRIN, por exemplo, por outros povos. No caso, ”A Flecha e a Farda” vai tratar dos Xerente e Krahô, se não engano, principalmente esses povos, o GRIN fez seu recorte com os Tikmũ’ũn (Maxakali). Há época da pesquisa do GRIN teve um documentário mais jornalístico, que foi de pesquisa jornalística mesmo, para uma matéria da Pública que acompanhou os Krenak. Então tem todos esses materiais assim, desde esses mais recentes… e acho ótimo que que tenha mais.

Juli – E como é que você chegou nesse assunto? Nesse tema especificamente? Você já pesquisava sobre isso? Alguém te convidou para fazer algo nesse sentido? Como que foi?

Roney – Eu estava ministrando uma oficina de documentário na Biblioteca Alberto Santos e aí tinha uma das pessoas que participou da oficina, que era uma pesquisadora Kariri, a Rose Araújo, e ela tava muito… ela também é ativista do campo indígena, ela é indígena Kariri, e ela estava muito por dentro do que estava acontecendo. E entre as discussões com todos os alunos ali da oficina, ela tomou a iniciativa de vir direto e falar “olha, acho que precisa ser feito um filme sobre isso aqui”. Ela queria que alguém falasse sobre esse recorte da questão da ditadura e as mortes dentro do campo indígena que estava sendo contabilizado na época. Muito com a ajuda do Marcelo Zelic, que chegou a esse número projetado de mais de 8.000 mortes. A Paula Berbert também coloca na dissertação dela, uma dissertação sobre a Guarda Rural Indígena. Então tem esses dados aí.

A partir dessa provocação da Rose Araújo, eu vi que era realmente algo que estava no momento de a gente fazer algo e até para saber, para conhecer, porque não sabia nada a respeito. Aí, através da Rose que eu entrei em contato com o Marcelo Zelic, que estava aqui em São Paulo. E ele falou da história dele, da descoberta no antigo Museu do Índio, que hoje ele foi renomeado, mas no Museu do Índio, ligado à Funai, ele achou o material do Jesco Von Puttkamer e aí ele passou esse material digitalizado, assim como ele passou várias referências de pesquisa, passou o relatório Figueiredo, também digitalizado, e aí a gente viu que era um mar mesmo, muita coisa. A relação entre a ditadura e a questão indígena.

E tinha muito dessa produção do jornalista André Campos da revista Pública, que ele estava fazendo matérias sobre os Krenak, porque também estava muito ligado ao Reformatório Agrícola Krenak, por isso que ele partiu daí. E a relação dos Krenak é fundamental, tanto que recentemente quem teve mais respostas de possível indenização foi esse povo. E também porque acho que mais conseguiu juntar esses materiais, porque não só tinha a questão da guarda sobre eles, mas também a questão do reformatório. Inclusive o nosso filme, o GRIN, ele contribuiu nesse sentido porque o tradutor das entrevistas, o Douglas Campelo, que é um antropólogo, ele trabalhou muito tempo com os Maxakali, e ele percebeu que ajudaria a gente divulgar essas entrevistas traduzidas para as comissões estaduais que estavam acontecendo, e aí somou a ajuda, dentro desse material, em defesa também do que aconteceu com os Krenak.

Mas indo mais cronologicamente. A Rose Araújo então teve essa ponte. Ela acompanhou esse início mais no campo da pesquisa até a gente fechar. E aí eu acabei tomando mais a frente também por ter a disponibilidade para acompanhar e levar mais a frente esse projeto e fazer mais recortes dentro disso. E aí então, como eu vi que o Krenak era fundamental, era também totalmente relacionado com os Maxakali, que de longa data tem relação com os Krenak, com os Borun. E eu vi que tinha menos coisas sobre os Maxakali ligado à Guarda Rural. Ao mesmo tempo, eu vi, nesse início dos anos 2000, 2010 pra frente, que estava tendo uma potência cinematográfica, uma força de produção dos cineastas Maxakali. Então isso também ajudou a selecionar, a perceber que, como é uma questão, tanto do não indígena, quanto do indígena, era muito óbvio que tinha que ter uma co-direção indígena. E aí saber que tinha uma produção cinematográfica e tinham cineastas como Isael Maxakali, de larga produção, foi meio que imediato também a escolha de buscar o Isael para apresentar esse material e esse desejo de falar sobre isso, esse projeto.

E aí foi uma sincronicidade, porque ele já estava também querendo falar sobre isso. Porque quando estava todo mundo descobrindo isso e recebendo esses materiais, vendo as notícias, a notícia que saiu na Folha… teve outros antropólogos que foram fazer oitivas na aldeia em que o Isael morava, então isso já estava sendo discutido. E aí quando cheguei com a possibilidade de já fazer por conta de um prêmio de estímulo, aí foi essa sincronicidade, que tanto ele quanto a Sueli, tiveram interesse e toparam. E aí o filme se refez no sentido de se atravessar pelo modo Maxakali, na realização dele, então teve várias etapas. Essa foi a etapa da co-direção, que teve interferência na estética também e no recorte final, em como abordar.

Eu trabalhei no campo mais do testemunho da vítima dessa situação. No testemunho do ocorrido, os idosos queriam falar e ainda num momento delicado porque, entre os idosos que queriam falar, o Totó Maxakali, que recentemente, à época do filme, estava em luto por conta da Daldina Maxakali, filha dele que faleceu, então tinha… tinha essa ressonância do luto sobre todos aqueles depoimentos, o que acho que ampliou a sensibilidade de receber essas falas, porque tava exatamente vivendo aquilo. A gente atravessava uma aldeia e outra e eles comentavam que, onde a pessoa morre, na cultura Maxakali, aquele território passa a ser do Maxakali, daquele indivíduo ali que faleceu. E tem que ter uma organização assim, desse ser ali numa transformação em encantado na forma de canto.

Eles falavam que, conforme eles passavam em várias regiões entre uma aldeia e outra, eles ouviam cantos de mortos. E eram todos relatos também então, dessas violências entre fazendas, porque as terras deles estão nessa situação hoje, é muito tempo de contato e estão entre os povos com as menores demarcações de terra e entre fazendas, em conflito com fazendeiros. E é mais uma roupagem, a Guarda Rural Indígena, desse aspecto, que é uma negociação entre fazendeiros também para impedir o nomadismo, porque eles são um povo nômade.

E são situações que até hoje existem, então é uma criança que, por exemplo, vai pescar no rio e corre risco, ou mesmo toma tiro, porque entrou numa propriedade. E a pesca pros Maxakali é uma experiência feminina e as mulheres vão com as crianças. Então tem muito isso, medo de ir a mãe e as crianças para pescar e sofrer violência. Então o que a Daldina sofreu, de algum modo, estava totalmente relacionado, porque é uma outra roupagem, uma outra face, dessas violências que a gente estava ali abordando. Então, acho que isso é o que o GRIN, no seu momento, conseguiu captar em relação ao diferencial entre os outros materiais.

Juli – Eu ia te perguntar justamente isso da Daldina. Ela morreu um pouco antes de vocês chegarem. Ou seja, quando vocês chegaram lá, vocês já sabiam desse evento ou ficaram sabendo quando chegaram?

Roney – O filme teve várias etapas, primeiro eu fui na aldeia me apresentar, falar sobre o projeto e ver se seria possível realizar ele. E aí, quando saiu o edital eu fui avisar eles que a gente ia fazer o filme. Um pouco depois aconteceu a morte da Daldina e aí suspendeu tudo. A gente jogou, acho que duas semanas assim, foram uns quase 20 dias que a gente teve que, obviamente, jogar pra frente toda a produção esperando um mínimo luto, um tempo ali. E quando a gente chegou, já estava nesse outro momento deles quererem fazer manifestações, ainda em relação ao caso que não estava solucionado, porque ela foi largada sem socorro. Aí eu cheguei nesse outro momento em que já estava nesse outro ponto, com alguma ação ali já em relação ao caso, não estava imediato do acontecido. Então tinha ali um roteiro das pessoas que teria que entrevistar, mas todo o resto de como ia cruzar essas falas foi muito a partir dessas ações de manifestação em relação à Daldina. O filme foi todo atravessado a partir dessa situação que se colocou.

Juli – Claro. E quando vocês fizeram o filme quem vocês acharam que seria o público alvo? Para quem seria esse filme? Quem teria interesse nele?

Roney – Seria legal você perguntar isso pro Isael, assim, no que ele pensou. Mas a Sueli ela co realiza todas as produções também do Isael e aí acho que, de novo citando a dissertação da Paula Berbert, a gente percebe ali que ela queria que os Adrei, a gente, o estrangeiro, o não indígena, recebesse esse filme, que é também uma forma de flecha, um modo também de continuar nas lutas, para entender obviedades, que pra eles são obviedades, e que às vezes precisa a gente parar e pensar que, como por exemplo ela cita na dissertação, que a ditadura nunca acabou. Eu comento isso porque eu, por exemplo, achei que o filme ia tratar mais recortadamente de um período, a ditadura. Mas aí o filme mesmo acaba mostrando, através dela junto com Isael, que são ecos de violência que perpassam. A ditadura é só uma roupagem dessas violências.

Mas de início eu estava querendo contribuir com o material como documento, começou com essa objetividade, que eu comentei no começo, que gerou documentação para somar à busca da indenização em relação aos Krenak. Virou documento mesmo. Porque era isso que precisava, de um registro até do modo mais cru pensado em estética. Que é uma câmera parada na frente de um idoso que fala. Não tinha muito mais elaboração na perspectiva de que era importante isso, ouvir o idoso na sua versão da história pra gente entender. E então era pra todos os públicos ao mesmo tempo. E para além dessa objetividade, de contribuir com a Comissão… a federal já estava acabando, mas com as comissões estaduais, era de ter um relato da história pelo ponto de vista do indígena, do Maxakali, no caso. E isso aconteceu porque eles queriam falar, então eles queriam falar, mas também trazer o registro para eles mesmos.

O Isael fala que ele queria clarear, no sentido de iluminar esses ocorridos com o povo dele. E é aí quando a gente vê a extensão disso no “Essa Terra é Nossa” (filme seguinte de Isael e Sueli Maxacali) a gente vê que é pra gente, não indígena, e também pra eles. E ainda sobre público, esse filme, a pré estreia dele mesmo foi na aldeia, mas as primeiras pré estreias foram em escolas. Eu acho que esse é o público também, eu sempre pensei no filme como material para as escolas. Eu acho que tem que estar sempre sendo discutido isso, então também fizemos exibições em museus e espaços de rememoração histórica.

Juli – E o GRIN, ele tem esse efeito também de repovoar o nosso imaginário da ditadura. Porque ele ainda é muito branco, ainda é muito ligado à resistências acadêmicas e masculinas muitas vezes também. E aí eu acho que o filme tem um impacto bem forte, assim, dessa imagem indígena sobre o regime e uma outra linguagem para contar essa história.

Roney – Aproveitando ainda o termo linguagem, uma coisa que eu achava importantíssima era o filme todo ser falado em Maxakali. Porque os outros materiais que até então a gente estava vendo eram todos em português, que é uma segunda língua de todos os povos que estavam ali falando, não era a melhor expressão. Então era toda uma condução do Isael nesse sentido, é muito o que eu falei, que o filme foi atravessado pelo modo Maxakali e era essa a dificuldade da nossa equipe inicialmente, enquanto a gente estava levantando o projeto, a de se permitir atravessar por esses modos do povo Maxakali.

E daí é aquilo, a gente tinha um plano, uma lista de pessoas que a gente ia entrevistar, mas tudo foi atravessado pela morte da Daldina. Era uma morte recente, esse luto ainda sendo vivido, então essa carga ficou realmente muito forte. E quando tem aquele ritual, por exemplo, da Noêmia, que é um ritual em que o espírito da própria Daldina, fica ali cantando, é muito forte esse momento.Tanto que na pré estreia do filme na aldeia, a gente percebeu que trouxe uma tristeza, junto com a felicidade do êxito da conclusão do filme. Por isso só foi possível exibir o filme inteiro na aldeia uma vez só.

Teve uma imediata recepção da tristeza, daquele ritual e daquele luto todo de novo na aldeia, o que também acabava entrando em questões mais da própria cultura, em tabus da própria cultura Maxacali, de que não se pode trazer para a aldeia a pessoa que morreu. A pessoa fica onde faleceu, porque senão vai adoecer outras pessoas, pode trazer a tristeza de novo para a aldeia. Por exemplo, a Sueli viu um primeiro corte e aí, quando chegou nesse ponto ela não queria mais ver. Nesse ponto, digo, nesse ritual da Daldina, nesse momento triste do ritual que eles cantam para ela. Ela sempre achava muito forte.

Tem aquela cena da foto still, não sei se você está lembrada, mas é uma foto borrada. Era uma tentativa de retratar de modo sintético algo que é muito complexo deles, que é que quando você morre, você tem uma imagem, que é a mesma palavra para fantasma, mas que você precisa organizar isso em forma de canto. Por isso precisaram fazer um ritual para que ela conseguisse essa transformação em encantado. Eu acho isso também muito poético. Ao mesmo tempo tem um complexidade mais metafísica que nem ousaria falar, mas essa ideia de viração em oposição a uma possível perturbação da imagem fantasma. E como trazer isso? A gente ficou pensando como minimamente pincelar. E aí a gente foi então, numa busca de imagem, mas uma imagem meio fantasmagórica ao mesmo tempo e borrada, que ao mesmo tempo fosse a própria expressão feminina.

Juli: Tem mais alguma coisa que você gostaria de falar que eu não perguntei?

Roney: Não, acho que só indicar um livro que você acha em PDF e se chama “Desaguar em Cinema”. Ele é um livro com organização da Marina César, que é do Cachoeira. Doc. Que foi a grande estreia do filme em festivais, que é um festival potente de discussão de imagens para mobilizar coisas e imagens que se acreditam como forças mobilizadoras.

A Rosângela assistiu o GRIN ali e, como ela é uma pesquisadora muito aprofundada assim, dentro da cultura Maxakali, ela trouxe mais nuances de interpretação do próprio filme. A nuance, por exemplo, de interpretação da música. Afinal, a música final do filme é uma música que eles, assim que assistiram, quiseram cantar. É uma música que fala de transformação. Então acho que é um texto que ajuda a enxergar o filme. É o último capítulo do livro, chamado “Campos, Luto e resistência Tikmũ’ũn (Maxakali) no filme GRIN” do Bernard Belisário e da Rosângela de Tugny.

*A série de reportagens especiais “Sobre Terras e Mentes: O Ataque Militar aos Territórios e Culturas Indígenas“ faz parte do edital Memórias do Presente: Comunicação em Direitos Humanos com o tema “60 anos do Golpe: Arquivos para a resistência”.

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