EDITAL MEMÓRIAS DO PRESENTE
Descoberta do Filme “Arara”
POR JULI CANDIDO
Durante as investigações da Comissão Nacional da Verdade em 2012, um novo material veio potencializar o que se sabia sobre a Guarda Rural Indígena. Um pequeno rolo de filme em 16mm foi encontrado no antigo Museu do Índio, no Rio de Janeiro, por Rodrigo Piquet e levado ao pesquisador e organizador da comissão, Marcelo Zelic. Na película a documentação da formatura dos militares da Guarda Rural Indígena evidencia um espetáculo bizarro de padronização, militarização e ensino de tortura a céu aberto.
A imagem de dois indígenas carregando um terceiro em um “pau de arara”, técnica de tortura clássica do regime militar brasileiro, é a única imagem fotográfica que se tem dessa modalidade de tortura em toda a história da ditadura nacional. O que é possível de se encontrar antes do filme são apenas representações gráficas do aparato, mas não uma imagem real, muito menos em movimento.
O registro de “Arara” é de 1970 e de autoria do diretor Jesco Von Puttmaker, um judeu brasileiro que teve que fugir de um campo de concentração alemão para onde foi levado com seu irmão. No longa-metragem brasileiro de 2020, “A Flecha e a Farda” , o diretor Miguel Antunes Ramos mostra como a câmera de Jesco segue os gestos militares e registra a identificação das fardas por etnia, além dos cabelos compridos dos indígenas fugindo ao padrão militar.
Outro filme produzido com base na obra de Jesco, o curta-metragem GRIN, com direção de Isael e Sueli Maxakali, além do cineasta não-indígena Roney Freitas, retrata, através de depoimentos, como as marcas da GRIN permanecem vivas nos territórios indígenas Maxakali. As feridas deixadas pelo pelotão de Pinheiro vão de um lado ao outro do treino militar, dos que viraram soldados aos que apanhavam deles, da lembrança dos treinos sádicos, às execuções de torturas e mortes cruéis pelo próprio capitão.
Mas além das feridas mal cicatrizadas da ditadura, um evento marcante perpassa a filmagem do média e obriga o espectador a voltar ao tempo presente. Um pouco antes das filmagens, a pajé Daldina Maxakali foi atropelada por um homem em uma moto que lhe negou socorro, deixando que ela morresse na beira da rodovia. O filme prova então como os maus tratos direcionados às comunidades indígenas pela ditadura seguem vivos, além do descaso do poder público, cúmplice ainda de mortes diárias de indígenas em todo o território brasileiro.
O Reformatório Krenak
Além da guarda, outros aparelhos de controle foram instituídos na região do município de Resplendor (MG) durante o regime militar. A cadeia Krenak, chamada eufemisticamente de “reformatório”, era uma casa com alguns cômodos e um cubículo, onde os indígenas “desobedientes” eram trancafiados, muitas vezes por tempo indeterminado. O cubículo, parte mais temida da cadeia, era um minúsculo anexo à casa onde os prisioneiros eram colocados em solitária e onde uma goteira caia incessantemente na testa de quem ia parar lá, em um exercício clássico de tortura.
A cadeia Krenak era usada por membros da GRIN para todo tipo de prisão arbitrária, sendo as desculpas mais comuns: a embriaguez, a vadiagem, a prostituição, a saída do Posto Indígena sem autorização, envolvimento na luta de terra e a “perturbação das autoridades”. Considerada hoje por muitos inclusive como um equivalente de um campo de concentração, a cadeia tinha por objetivo dominar o modo de vida indígena, além de afastá-los de suas terras, deixando-as livres para a espoliação.
Em seu livro “Os Fuzis e as Flechas” Rubens Valente conta como uma comunidade Krenak da região foi expulsa de suas terras por um enxame de “baratinhas” trazidas pelos brancos, e sobre como quando voltaram passaram a ser tratados tal qual os encarcerados do “reformatório” (p.77).
Como se já não bastassem as violentas arbitrariedades cometidas pelos GRIN no exercício de seu poder, a cadeia se tornou uma nova ferramenta de práticas de sadismo. Em2012 descobriu-se que ao menos 100 indígenas passaram pela cadeia e que a maioria não tinha nem documento e nem acusação formalizada. As condenações eram feitas por Pinheiro e seus subordinados de acordo com o seu humor.
É importante lembrar da participação da Vale do Rio Doce nesse processo também. Não é àtoa que diversos profissionais passaram a se referir à ditadura brasileira como “ditadura empresarial-militar”. A mesma mineradora que décadas depois iria contaminarcompletamente o Watu (como os Krenaks chamam o Rio Doce, a quem consideram seu avô), foi a empresa que emprestou seus trens para o transporte de pessoas para as cadeias indígenas.
Segundo o capítulo “Violações de Direitos Humanos dos Povos Indígenas”, do relatório final da Comissão Nacional da Verdade (CNV) , o general Oscar Geronymo Bandeira de Melo, presidente da Fundação Nacional do Índio (Funai) entre 1970 e 1974, é indicado como criador do reformatório Krenak. Segundo o documento o general teria sido responsável por manter o local como “instalação prisional pela Funai e local de tortura, morte e desaparecimento forçado de indígenas”.
Comissão Nacional Indígena da Verdade e Marco Temporal
A recente vitória dos povos Krenak e Guarani Kaiowá perante a justiça, com o reconhecimento de violações ocorridas no período militar contra seus povos, trouxe uma nova esperança aos indígenas que lutam pela proteção de suas comunidades. Pela primeira vez desde a sua criação em 2002, a Comissão da Anistia fez um reconhecimento coletivo de danos causados pela ditadura aos indígenas das duas etnias e fez um pedido de desculpas público a ambas, além de aprovarem recomendações a órgãos públicos de modo a impedir que esse tipo de violações se repitam.
“Queria me ajoelhar perante o senhor. Estou muito emocionada, mas, em nome do Brasil, do Estado brasileiro, quero pedir desculpas. E que o senhor leve esse pedido de desculpas a todo seu povo, em nome da Comissão de Anistia e do Estado brasileiro”, disse, de joelhos, a presidenta da comissão, a advogada Enéa de Stutz e Almeida”. Conforme registrado por Alex Rodrigues para a Agência Brasil.
Mas mesmo assim muitos indígenas continuam insatisfeitos, já que esse reconhecimento foi feito para apenas duas etnias e ainda falta muito o que se investigar sobre os ataques à indígenas feitos pela ditadura militar. Por isso muitos apoiam a criação de uma Comissão Nacional Indígenas da Verdade, já que foram eles também os mais afetados pelo regime.
Paralelo a isso, grupos indígenas pressionam também contra as tentativas de imposição de um marco temporal à ocupação de suas terras e uma Comissão Nacional Indígena da Verdade poderia ajudar diversos povos a provarem que foram obrigados a sair de seus territórios por motivos de perseguição, por exemplo, e contrapor a argumentação simplista de que eles só poderiam ser donos das terras que ocupavam em 1988, quando foi promulgada a constituição.
Tempos históricos e momentos políticos distintos se misturam quando pensamos na questão indígena e poderíamos sem erro dizer que esses povos são perseguidos desde a colonização, mas atualizar o debate segundo as normas de ataque traçadas pela ditadura empresarial-militar nos ajuda a entender o que está em jogo nas empreitadas atuais de tentativa de invasão de terras indígenas e deslegitimação jurídica desses povos sobre suas aldeias. O agressivo projeto de colonização das florestas brasileiras continua vivo e mais do que nunca precisamos de ferramentas para enfrentá-lo.
*A série de reportagens especiais “Sobre Terras e Mentes: O Ataque Militar aos Territórios e Culturas Indígenas“ faz parte do edital Memórias do Presente: Comunicação em Direitos Humanos com o tema “60 anos do Golpe: Arquivos para a resistência”.