Lívia Lima,
do Nós, mulheres da periferia para o Memorial da Resistência
No dia 7 de julho de 1978, mulheres e homens negros fizeram história em um ato nas escadarias do Teatro Municipal de São Paulo, oficializando a fundação do Movimento Negro Unificado Contra a Discriminação Racial (MNU), organizado um pouco antes, em 18 de junho. Este se tornaria uma das mais importantes articulações políticas negras do país dali em diante.
O manifesto aconteceu como reação de militantes de diferentes entidades diante de dois casos de racismo – o primeiro envolvendo meninos do time infantil de vôlei do Clube Regatas Tietê, e o segundo, a prisão, tortura e morte de Robson Silveira da Luz.
Robson era um jovem de 21 anos, morador de Guaianases, bairro de periferia no extremo leste da cidade de São Paulo. Casado com Sueli da Luz, eram pais de um filho e esperavam o segundo. Trabalhava em um bar no centro da cidade, onde fica o Teatro Municipal, local do protesto por sua morte, mas bem distante de sua casa.
Segundo o cientista social e pesquisador Paulo César Ramos, Robson voltava à noite para casa com amigos quando passou por um caminhão de frutas e pegou algumas para comer no caminho. Após denúncia de uma testemunha, o dono do veículo denunciou o grupo à polícia, que passou a persegui-los.
Os jovens foram presos e torturados. A esposa, Sueli, foi algemada na delegacia. Robson foi levado no dia 29 de abril para o 44º Distrito Policial. Após tortura, foi encaminhado desacordado para o pronto-socorro de São Miguel Paulista, também na zona leste, onde passou por cirurgia no rim, mas não resistiu e faleceu em 4 de maio.
O caso ganhou repercussão e os ativistas negros se indignaram com este episódio, que, infelizmente, é ainda tão comum nos dias de hoje. Em 2020, em plena pandemia do novo Coronavírus, o Brasil teve o maior índice de pessoas mortas pela polícia, segundo levantamento do Fórum de Segurança Pública. Dados do Monitor da Violência mostram que 78% desses mortos eram negros.
Entre presente e passado, resgatar a memória e história do povo periférico, negro, indígena, migrante é o principal objetivo do Centro de Pesquisa e Documentação Histórica – CPDOC Guaianás, grupo criado em 2014 por trabalhadores ligados ao movimento cultural para realizar pesquisa nos bairros de Lajeado, Guaianases, Cidade Tiradentes e São Mateus, onde vivem.
Segundo a cientista social e militante política Renata Eleutério, uma das fundadoras do CPDOC e moradora de Guaianases, hoje a 44º DP, onde Robson foi torturado até a morte, fica em outro endereço no bairro. O acesso a documentos desse espaço também é bem difícil. Ela, porém, já ouviu o relato de uma professora, que na infância era vizinha da delegacia, e que, ouvia à noite os gritos e pedidos de socorro que vinham do lugar.
“O CPDOC vai nessa perspectiva, no sentido de fomentar que as trabalhadoras e trabalhadores tornem-se sujeitos de sua história. Começar a perceber a sua própria história dentro do bairro, dentro dessa constituição toda. E da importância da memória dos nossos processos de luta, principalmente. Tudo que a gente tem aqui parece que um determinado momento se naturaliza, e as pessoas não sabem mais contar as suas histórias e aquelas que lutaram talvez já partiram ou não tenham mais forças. Eu acho que suas experiências contribuem muito para que as pessoas se percebam enquanto sujeitos”, afirma.
Outro endereço que interessa atualmente o grupo de pesquisadores é a COHAB (Companhia de Habitação Popular) Prestes Maia, em Cidade Tiradentes, onde, segundo Renata, foi mantida uma cela onde supõe-se que prisioneiros dos militares eram torturados e mortos. Ao que consta nas investigações do CPDOC, realizada com os moradores, as pessoas encaminhadas para lá não eram vistas depois. As pesquisas indicam, também, que na região havia alguns terrenos utilizados para a prática da morte e desova de corpos, como a região do Parque do Rodeio, também em Cidade Tiradentes, onde já foram recolhidas ossadas.
“Por muito tempo se achava que os perseguidos na ditadura foram somente pessoas da classe média, ou que viveram entre Pinheiros, Jardins, no centro da cidade. Mas nós tivemos essa história também aqui. Claro, o sofrimento por aqueles anos da carestia todos sofremos, mas também tivemos aqui pessoas que foram diretamente perseguidas por esse aparelho repressor que foi montado. E estamos aqui para contar essas histórias. Elas, essas pessoas estão aqui para contar as suas histórias e a gente está servindo como ponte”, esclarece Cristina Assunção, historiadora, educadora e atriz, moradora de Artur Alvim, na zona leste de São Paulo.
Cristina é articuladora do projeto Territórios da Memória, do Instituto Vladimir Herzog, que promove atividades que discutem a ditadura nas regiões periféricas.
Em depoimento para o projeto, Astrogilda Pereira, professora de História da rede estadual aposentada, sindicalista e membro da Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, exemplifica como aconteciam as perseguições políticas na Vila Matilde, onde vive até hoje.
“Eu me casei com Geraldo Rosa Valentim,que foi sargento da polícia militar. Meu marido era do partido comunista, porque existia uma célula do partido na polícia militar. No dia 17 de junho tocaram a campainha aqui em casa, e eu fui atender, aí tinham duas pessoas, os dois cidadãos, eu lembro que os dois eram brancos. Eles perguntaram pra mim: o sargento Geraldo Rosa Valentim está? Eu falei está, aí eu falei pro meu companheiro: olha, tem duas pessoas ali fora. Ele falou pra mim: chegou a hora. Aí nós fomos na padaria do bairro, eles estavam lá no balcão tomando café, aí eu voltei pra casa.Desse dia em diante meu marido desapareceu”.
Outra moradora da cidade Tiradentes, apesar de não estar diretamente envolvida com atividades políticas, a funcionária pública Eliana Fanasca, 66, hoje moradora de Cidade Tiradentes, relembra sua infância e adolescência na Penha.
“Eu não entendia o que estava se passando porque em casa não se conversava sobre isso abertamente. Não podia ter rodinha conversando na rua, principalmente à noite. Havia um policial militar que ficava na escola diariamente, andando pelos corredores e se a sala de aula estivesse fechada, ele abria a porta pra ver sobre o que o professor estava falando. Uma vez numa aula de história, a professora resolveu falar sobre história contemporânea, na qual nos relatou sobre a guerra civil que se desenrolava no Araguaia. Essa professora era comunista. Claro que o policial da ronda abriu a porta. Quem fica pedindo a ditadura de volta tem o direito de falar isso, de exteriorizar o que pensa justamente pela morte de quem lutou naquela época, né?”
Em se tratando de luta contra a ditadura, a integrante do CPDOC, Renata Eleutério, acredita que havia movimentos organizados nos bairros periféricos que se arriscaram diante do regime opressor mobilizados por melhorias para seus territórios.
“A luta do povo é o que mobiliza e que vai enfrentar o Estado que a gente vive, é a luta pelo básico, é a luta pelo concreto. Então se a gente tinha grupos radicais organizados no campo, na cidade, na fábrica, que não só lida com o imediato, que é a fome, a miséria, mas começa a entender o porquê que se está precisando. E é se organizando que vão tomando essa consciência”.
Renata destaca, no contexto histórico do período, a importância de lideranças religiosas da Igreja Católica, orientadas pela Teologia da Libertação, que influenciaram as populações periféricas na organização para a conquista de direitos em suas regiões, com destaque para os movimentos de moradia e saúde na zona leste, especificamente, nos quais a participação das mulheres era predominante.
A pesquisadora lembra o marco de fundação da Vila 1º de Outubro, em Guaianases, que se constituiu a partir de um terreno ocupado por famílias sem teto, onde, na década de 80, cerca de 150 pessoas armadas reagiram à intervenção da polícia militar em defesa da permanência no território. No conflito, as mulheres, incluindo grávidas dentre elas, ficavam na linha de frente, como forma de intimidar e bloquear a ação violenta dos policiais.
“São homens que apareceram na história, mas muitas mulheres aqui mantiveram a base. A figura política, pública, que sai discursando, que vira referência, e as figuras que estão no território, que também são políticas, mas são elas que dão firmeza pra luta. Elas mantêm a luta no dia a dia”.
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Quer saber mais sobre as memórias da ditadura nas periferias de São Paulo?
Conheça a história de luta e resistência de Perus e da Zona Sul da capital, primeira e terceira partes de uma série de conteúdos produzidos pelo Nós, mulheres da periferia em parceria com o Memorial da Resistência.
Assista também a LIVE “Memórias da ditadura nas periferias de São Paulo“, com mediação do Nós, mulheres da periferia, que reúne pesquisadoras e moradoras de bairros periféricos paulistanos para falarem sobre as lutas de resistência nos territórios durante os anos ditatoriais.
Em parceria com o Memorial, a redação jornalística Nós, mulheres da periferia realizou uma reportagem especial sobre as lutas de resistência e as memórias da ditadura civil-militar em algumas das regiões periféricas da capital paulista.
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