EDITAL MEMÓRIAS DO PRESENTE
Os Alvos
POR JULI CANDIDO
434. Esse segue sendo o número oficial de mortos e desaparecidos durante a ditadura empresarial-militar brasileira segundo a Comissão Nacional da Verdade de 2012. Talvez pareça pouco se comparado aos números da Argentina e Chile, por exemplo, que podem ultrapassar os 9 mil, por esse motivo a ditadura brasileira foi apelidada de “ditabranda”, com a implicação de que os estragos causados por ela teriam sido menores do que a de suas vizinhas. Mas o que acontece quando somamos a esse número os mais de 8.350 indígenas massacrados por esse mesmo sistema?
Quando se pensa em resistência à ditadura brasileira as primeiras imagens suscitadas são as de universitários brancos correndo da polícia, greves de operários em grandes centros industriais e eventualmente de reuniões clandestinas de feministas. Raras vezes ouve-se falar na corajosa resistência indígena, que salvou não só a vida de comunidades e etnias inteiras, como também serviu para preservar grandes porções de biomas brasileiros, condenados pela mentalidade colonizadora dos militares. Mas se as terras indígenas eram o ouro que a ditadura precisava para fomentar o seu projeto de nação, não eram só nas terras que os governantes miravam.
Assim como as comunidades de sexualidade e gênero desviantes, as comunidades indígenas foram perseguidas pela ditadura empresarial-militar por representarem formas de vida diversas e não por quererem impor um novo modelo sócio-político e econômico, como era a desculpa oficial da época para perseguir pessoas opositoras do sistema. Os militares não precisavam só das terras, mas também das mentes indígenas.
Para que o projeto megalomaníaco de nação do regime saísse do papel, eles precisavam passar por cima daqueles que preservavam os territórios em sua forma cíclica e pré-industrial, e para isso era necessário primeiro destruir as suas culturas. Cada grande obra da ditadura vinha com o saldo de, no mínimo, algumas dezenas de mortes indígenas, além de incontáveis torturas e traumas físicos e epistemológicos impressos nos corpos dos sobreviventes.
Antes da criação do órgão hoje conhecido como Funai (Fundação Nacional dos Povos Indígenas), a entidade pública designada a cuidar de assuntos indígenas era o então chamado (um tanto ironicamente), Serviço de Proteção ao Índio. Que embora carregasse consigo o termo “proteção”, tinha como objetivo integrar povos indígenas à lógica engessada de um território nacional único em sua estrutura cultural e política, além de destruir, matar e explorar quem tentasse se colocar no seu caminho.
Foi durante as investigações da Comissão Nacional da Verdade em 2012, que o documento chamado de “Relatório Figueiredo”, até então desaparecido, voltou a ver a luz do dia. Organizado pelo procurador Jader de Figueiredo Correia a pedido do ministro do interior brasileiro Afonso Augusto de Albuquerque Lima em 1967, o relatório de mais de 7.000 páginas, foi o responsável por abrir a caixa de Pandora das provas das violações cometidas pelos militares contra os povos indígenas do Brasil.
Já em 1967, quando foi publicado o relatório, o Serviço de Proteção ao Índio (SPI) foi fechado e substituído pela Funai, chamada à época de Fundação Nacional do Índio. Segundo o texto, o SPI teria atacado terras, estuprado e matado indígenas de diversas regiões e deixando várias etnias próximas da extinção. No documento apareciam exemplos de atrocidades cometidas contra os indígenas como: dinamite jogada de aviões nos Cinta Larga, catapora espalhada propositalmente entre os Pataxó e doação de sacos de açúcar com estricnina em diversas comunidades espalhadas pelo Brasil.
A Guarda Rural Indígena
Os exemplos de crueldade cometidas pelos militares contra indígenas no período da ditadura são, não só inumeráveis, como também impressionantes em termos de criatividade sádica. Apesar disso, um desses casos deve ser ressaltado por sua estrutura de organização e pela longevidade de suas consequências: a Guarda Rural Indígena, ou GRIN, como ficou apelidada.
Implementada por Queirós Campos, primeiro presidente da então recém fundada Funai, o projeto supostamente visava a autodefesa dos indígenas contra invasores, ao mesmo tempo em que pretendia “impedir que silvícolas também pratiquem desmandos”. Na prática a guarda era um destacamento militar que reunia diversas etnias sob o comando do capitão Manoel dos Santos Pinheiro, ou Capitão Pinheiro, como ficou conhecido.
Tudo começou quando o saque às terras Maxakali chegou a tal ponto que as comunidades começaram a passar fome. Telésforo Martins Fontes, a frente do SPI, impôs umsistema de arrendamento de terras à região que serviu para embranquecer o território e a cultura dos indígenas. “Segundo Tomé Maxakali (…) as terras de seu povo ficaram ‘parecendo terra de branco’, cheia de bois e do capim colonião que toma conta de tudo até hoje.” Como mostra Paula Berbert em seu texto “Perspectivas tikmũ’ũn_maxakali sobre a história da ditadura e os desafios da justiça de transição no ‘tempo dos golpes’”.
Roubados de sua autonomia alimentar por terem suas roças transformadas em pasto, a única opção que sobrou aos indígenas da região foi matar o gado para comer. As mortes obviamente suscitaram a raiva dos fazendeiros que avançavam sobre as terras indígenas e a violência entre os dois grupos passou a aumentar. Foi nesse momento que Capitão Pinheiro foi acionado para implementar uma estratégia de contenção desses embates entre fazendeiros e indígenas.
Os arrendamentos eram tentativas de transformar os Maxakali em produtores rurais obedientes ao estado e fazer com que perdessem seus antigos modos de caça e pesca livre e nômade. Mas essa estratégia não estava funcionando e então Pinheiro decidiu que sua ação deveria ser não mais apenas sobre a transformação das terras, mas era hora de avançar também sobre os corpos e mentes Maxakali na tentativa de dobrá-los perante o sistema.
Assim, a primeira medida adotada por Pinheiro foi um pedido de intervenção militar nas terras Maxakali, ao que o governador de Minas Gerais, seu tio, logo cedeu. A história contada pelo capitão aos indígenas, era a de que estava ali para expulsar os brancos de seus territórios, além de encher os seus armazéns de comida. Esse tempo de militarização das terras Maxacali ficou conhecido como “o tempo de Pinheiro” e apesar de ter trazido alguns benefícios de início, logo se transformou em um pesadelo de escassez, restrições e tortura.
Após uma primeira tentativa de dominação por parte dos militares não-indígenas, Pinheiro percebeu que o espírito da comunidade, além de seus modos ancestrais de vida, não seriam tão fáceis de quebrar. Os Maxakali continuavam com suas práticas de caça e pesca pelas costas dos homens de Pinheiro, e foi por isso que o capitão decidiu criar uma guarda de vigilantes da própria aldeia, ideia que se alinhava perfeitamente à lógica de assimilação da ditadura. O sucesso do destacamento de vigilantes Maxakali foi amplamente divulgado na mídia brasileira e graças a isso Pinheiro decidiu expandir o seu projeto criando uma guarda rural indígena nacional.
*A série de reportagens especiais “Sobre Terras e Mentes: O Ataque Militar aos Territórios e Culturas Indígenas“ faz parte do edital Memórias do Presente: Comunicação em Direitos Humanos com o tema “60 anos do Golpe: Arquivos para a resistência”.